segunda-feira, 19 de abril de 2010

Mas o que é mesmo gramática?

Existe, hoje, uma forte deturpação da concepção do que venha a ser uma gramática, causada, principalmente, pela limitada maneira como é abordada a questão nas aulas de português. A lingüística, ciência que estuda a língua, sequer é mencionada nas escolas, e isso gera a idéia de que estudar uma língua se resume a aprender uma série de regras para um “português correto”, que ninguém fala, apenas conhece.

Temos a terrível idéia de que podemos “assassinar a língua”, como se ela fosse uma entidade que está fora de nós; sem saber que, na verdade, nós é que criamos a língua, e a gramática surge como uma forma de sistematizar o funcionamento do idioma. Não é a gramática que impõe a linguagem, e sim a linguagem que diz como a gramática deve ser.

Desde o século XIX, os lingüistas perceberam que a mudança, a evolução, é caráter inerente de toda língua. Aí é que está o problema, pois a Língua Portuguesa se modifica a todo instante, e existe uma tendência burocrática que impede as atualizações nas gramáticas normativas. Só depois de quinhentos anos de utilização da expressão “Vos mercê” ao invés de “Vossa mercê” é que a mesma foi, digamos, “regularizada”, aceita.

Certa vez assisti a uma palestra onde o palestrante proferiu a seguinte frase: “Ensinar português é mais ensinar filosofia do que qualquer outra coisa”. Hoje, entendo o porquê. Lingüística é filosofia da linguagem, e os estudos fonéticos, morfológicos, sintáticos, semânticos e estilísticos são extremamente filosóficos e, acreditem, interessantes! Entretanto, o que é repassado aos alunos – talvez por subestimar a capacidades dos mesmos, ou talvez pela mediocridade de muitas pessoas que cursam Letras e que não entendem a filosofia por trás disto tudo – é repassado de forma acrítica e, muitas vezes, sem que os estudantes possam perceber a relevância daquilo.

O preconceito lingüístico é extremamente forte em nosso país, e o ensino das teorias Lingüísticas poderia ajudar a diminuir isto. As pessoas aprenderiam que dizer que uma expressão como “dois pão” é inferior a “dois pães” é um julgamento social, histórico e, principalmente, político; nunca lingüístico. A ciência da língua nos diz que todo idioma é ideal à comunidade que o utiliza. Dessa forma, não é relevante a uma tribo indígena, que vive da caça, pesca e colheita, o conhecimento de vocábulos como “computador”, “telescópio”, “adjunto adverbial”; a partir do momento que eles precisarem de uma nova palavra eles a inventarão. Porém, ainda acreditamos que o Alemão é superior ao Português porque aquele tem mais expressões, quando, na verdade, isso não passa de uma visão eurocêntrica da realidade. Da mesma forma, achamos que “dois pães” é melhor, mais correto, que “dois pão”, simplesmente porque é o dialeto da classe dominante. Isso é ideologia, relação de poder, não lingüística.

Não sabemos, por exemplo, que a troca do “rê” (de caro) pelo “lê” (problema/probrema) é muito comum na nossa língua, haja vista que esses dois sons apresentam modos de articulação bastante semelhantes. Assim é que a palavra latina “gluten” deu origem a nossa palavra “grude” e a palavra “nobile” originou “nobre”. Essa troca é constante e, possivelmente, daqui a alguns anos, poderemos voltar a falar “prantação” ao invés de “plantação”, como podemos perceber nos Lusíadas, de Camões.


Para finalizar – pois todas essas discussões são muito mais complexas do que vos apresento aqui, e merecem um espaço maior dedicado a cada uma – me valho de uma citação do Curso de Lingüística Geral, de Sausurre, que depois de algumas relidas pude entender:

"Outras ciências trabalham com objetos dados previamente e que se podem considerar, em seguida, de vários pontos de vista; em nosso campo, nada de semelhante ocorre. Alguém pronuncia a palavra nu: um observador superficial será tentado a ver nela um objeto lingüístico concreto; um exame mais atento, porém, nos levará a encontrar no caso, uma após outra, três ou quatro coisas perfeitamente diferentes, conforme a maneira pela qual consideramos a palavra: como som, como expressão de uma idéia, como correspondente do Latim nudum etc. Bem longe de dizer que o objeto precedo o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto; aliás, nada nos diz de antemão que uma dessas maneiras de considerar o fato em questão seja anterior ou posterior às outras".


Todas as ciências partem do significado da palavra para, a partir daí, criarem seus objetos de estudo. A palavra “sociedade”, por exemplo, terá diversas conceituações de acordo com a área de estudo, mas a lingüística é a única que pode considerar “sociedade” simplesmente como uma seqüência fonética dotada de sentido a uma determinada língua (a portuguesa). Os lingüistas consideramos a palavra em todas as suas dimensões (sonora, estrutural, funcional, semântica, estilística) e podemos, assim, definir, criar nosso objeto de estudo, a partir da forma como encaramos a palavra.

A palavra tem asas, eu me prendo às suas e vou; vôo. Nas asas da palavra. Alis verbi. Até a próxima.

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